REPENSANDO A ARTE NO TEMPO DO DIGITAL

Arlindo Machado

 

 

 

 

REPENSANDO A ARTE NO TEMPO DO DIGITAL

ARLINDO MACHADO

Dentre os artistas latino-americanos que participam do debate internacional sobre os rumos que a arte vem tomando nos últimos anos em decorrência da assimilação cada vez maior de processos científicos e tecnológicos, Gonzalo Mezza tem ocupado, sem dúvida, um lugar privilegiado. Utilizando, desde o início da década de 70, recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados (filme, vídeo, neon, projeções a laser, computador, redes telemáticas etc.) para a elaboração de seus trabalhos criativos, ele acabou por cons- truir uma perspectiva muito particular de enfoque da mediação técnica. Certamente, a obra desse importante artista chileno tem se mostrado afinada com os rumos tomados pelas poéticas tecnológicas no plano internacional, mas ao mesmo tempo se desloca deles em alguns aspectos significativos, uma vez que se deixa também contagiar pela intensa realidade desta parte do mundo bastante peculiar que habitamos.

É muito difícil falar de geografia quando se lida com obras desmaterializadas, que transitam sob forma de energia e podem estar disponibilizadas simultaneamente em qualquer parte do planeta, via Internet, obras que inclusive não têm forma definitiva, podendo ser modificadas pelos canais de difusão ou por todos aqueles que têm acesso a elas. De fato, é quase impossível identificar a grande maioria dos trabalhos que hoje transitam pela Net em termos de localização geográfica ou identidade local, pois tudo tende a se coletivizar e a se globalizar imediatamente após ser disponibilizado na rede mundial. Até a língua tende a se tornar homogênea. No entanto, alguma coisa na obra de Mezza resiste a toda possibilidade de uniformização. Sempre permanece nela o traço de uma visualidade particular, que historicamente aprendemos a identificar como sendo "do sul", como os ícones e formas estilizadas de civilizações andinas, ou da Oceania, Africa e Ilha da Páscoa. Esses ícones comparecem nas instalações de Mezza de uma forma que a Teoria da Gestalt não hesitaria em chamar de pregnante: eles definem uma intenção visual ou um campo de forças, cujas linhas gerais se mantêm intactas mesmo quando a obra é submetida a intervenções as mais desarticuladoras.

Com a generalização do computador e da Net, tornou-se um lugar comum dizer que, a partir de agora, toda obra é sempre o resultado de uma gigantesca e imprevisí- vel interação que se dá num processo coletivo de criação. Em outras palavras, uma obra de arte hoje não pode mais ser tomada como a expressão de uma subjetividade individual, mas como um processo cósmico total, comandado por uma espécie de hipersujeito (termo introduzido por Mario Costa). A Net seria então concebida como um organismo "vivo", no qual alguma espécie de consciência incontrolável, universal e coletiva estaria sendo engendrada. Esse organismo "pensaria" e se "organizaria" através das miríades de interferências realizadas em seu corpo virtual por pessoas de todo o mundo.

Mas estaríamos de fato assistindo a uma completa dissolução do sujeito e de seu espaço/tempo, à superação do "artista" pela criação anônima e coletiva, ao apagamento do local e circunstancial em nome do geral e global? A obra de Mezza parece nos auto- rizar a encarar essas questões sob um ângulo um pouco diferente. Talvez fosse melhor dizer que novas e mais complexas formas de subjetividade e de identidade estão agora nascendo para além dos dualismos simplistas eu/outro, indivíduo/coletividade, interior/exterior, aqui/lá. Afinal, como podemos pensar em interfaces, se não considerarmos realidades diferenciadas para serem colocadas face a face, para dialogar? Num certo sentido, a Net é um organismo coletivo e universal, mas ao mesmo tempo é nela que as pessoas estão hoje desenhando suas identidades, construindo sua história, mapeando e filtrando campos de interesses, de desejo e de ação.

Uma das imagens disponibilizadas por Mezza em seu Museu Virtual mostra uma Vênus de Milo como se fosse uma massa de gelo, flutuando entre os icebergs dos mares gelados da Antártida. Esse tipo de collage possibilitado pelo tratamento digital da imagem funciona quase como uma metáfora dos processos de mestiçagem hoje em andamento no chamado cyberespaço. Chamamos de mestiçagem todo processo de contaminação das fronteiras e das linguagens, bem como a apropriação e reciclagem dos materiais que já circulam nas redes telemáticas. As imagens são compostas agora a partir de fontes as mais diversas, com base geralmente em outras imagens preexistentes e, nesse sentido, elas são entidades híbridas, constituídas por figuras em migração permanente. Na era dos satélites, já não estamos mais isolados do mundo e não podemos mais pensar as identidades como guetos incontamináveis, mas como um processo de diálogo em que eu e o outro nos transformamos mutuamente a cada contato. As identidades agora são menos fixas, menos precisas (esse traço é meu, ou de alguém que interferiu em meu trabalho, ou já estava anteriormente na imagem de que me apropriei?), mas talvez por isso mesmo mais intensas, pois só quando sou confrontado com a diversidade é que melhor me dou conta de minha singularidade. O mito grego no vértice do Cone Sul nos convida a pensar sobre quem somos e como podemos ainda nos definir como "nós" quando o movimento em direção à indiferenciação é cada vez maior.

A obra mais recente de Mezza (por exemplo, o projeto M@R.CO.SUR, que vem sendo desenvolvido desde 1995 e foi apresentado na XXIII Bienal de São Paulo) busca hoje apontar soluções inovadoras para a reconsideração da arte em nossas sociedades fortemente centralizadas pela tecnologia. A idéia que parece ancorar o projeto do artista é aquela segundo a qual uma nova etapa no trajeto do homem não destrói as anteriores, mas se superpõe a elas, produzindo resultados não necessariamente predatórios, mas de maior complexidade. Em lugar de simplesmente sentenciar a morte da pintura, do museu, da galeria de arte, do lugar específico para a ocorrência da arte, Mezza nos coloca questões mais inteligentes e também mais afinadas com uma nova consciência ecológica. Como fazer com que o museu, fisicamente instalado num lugar (numa cidade, num país, num continente), possa dialogar com a Net? Como interligar os eventos imateriais, não-localizáveis e globalizados da Net com a instalação e a performance localizadas num espaço determinado, para onde as pessoas devem fisicamente acorrer? Como a criação individual, materializada numa pintura por um artista singular, pode encontrar um novo ambiente de fruição e uma nova modalidade de "espectador", baseados não mais na reverência passiva, mas na assimilação transformante? O projeto atual de Mezza busca a realização de obras, eventos, instalações, ou campos de acontecimentos simultaneamente nos espaços físico e eletrônico, sem fazer qualquer distinção de princípio entre uma área reservada para a arte (o "cubo branco" da galeria de arte) e um ambiente supostamente não-artístico (a Net). Assim, imagens ("artísticas" ou não) disponibilizadas na rede podem ser acessadas num evento público com lugar e tempo definidos para compor um espetáculo singular, local e irrepetível. Inversamente, pessoas de qualquer parte do mundo, navegando pela Internet, podem interferir sobre eventos que acontecem fora da Net, num espaço público (um museu, uma bienal), e eventualmente ter de volta o resultado de sua intervenção.

Falamos muitas vezes em "obras" por vício de linguagem, mas é evidente que esse termo não pode, no contexto da obra de Mezza, ser entendido no sentido tradicional, como alguma coisa que se completou, que está acabada e pode ser colocada em circulação com a rubrica de um autor. As "obras" são agora processos abertos, em contínuo progresso, que vão acumulando resultados, os quais, por sua vez, alimentam novos ciclos. Outros artistas podem interferir na obra originalmente oferecida como resposta ao gesto primeiro do artista de partir de obras já anteriormente existentes. Além disso, o público presente tanto no espaço físico da instalação quanto no espaço virtual da Net pode também intervir no processo. Cada vez que um trabalho de Mezza é "reinstalado", ele já é algo diferente e incorpora resultados das últimas montagens. Mas talvez essa seja uma condição de toda obra de arte de qualquer tempo, pois, a rigor, uma obra jamais "termina", ela é interrom- pida por contingências externas ao trabalho. Borges já dizia, a seu tempo, que o conceito de obra acabada só diz respeito à religião ou ao cansaço. Os atuais eventos que ocorrem no cyberespaço apenas dão evidência estrutural àquilo que está na raiz de todo processo criativo.

Se pudéssemos resumir tudo num parágrafo, poderíamos dizer que o trabalho mais recente de Mezza possibilita compreender melhor o complexo processo de interação de todas as inteligências e sensibilidades que possibilitam a ocorrência da experiência estética contemporânea. O artista hoje é uma espécie de regente de uma orquestra invisível formada por um número variável de agentes criativos. Isso implica, é claro, uma desmistificação de certos valores convencionais ou até mesmo arrogantes, inspirados na idéia de "obra" como produto acabado concebido por um gênio criativo individual, que ocuparia uma posição superior na hierarquia das competências do fazer artístico. Quando Mezza disponibiliza seus computadores e trabalhos para quaisquer visitantes de suas instalações ou quaisquer navegantes da Internet, quando abre a possibilidade de outros artistas e usuários ocuparem parte do espaço de seus trabalhos, ele está, na verdade, inscrevendo seu trabalho num processo de diálogo, em que nenhuma das partes produz uma determinação final. Isso não quer dizer necessariamente que a arte foi colocada nas mãos de todos, que qualquer um pode fazer arte, como às vezes se lê e se ouve em discursos duvidosos sobre uma suposta democratização da arte. Se, de fato, muitos dos resultados obtidos nas instalações de Mezza resultam de uma complexa interação e jamais poderiam ter sido premeditados ou planejados pelo artista, por outro lado também jamais poderiam emergir a partir de uma utilização apenas convencional dos dispositivos técnicos, dentro dos seus padrões "normais" de funcionamento. Se os resultados têm qualidades que podemos considerar, num sentido novo, estéticas, é porque o "regente" soube extrair o má- ximo da conjugação de fatores.

Agora, saber se a "obra" obtida através desse processo é criação do artista que a concebeu ou dos visitantes que nela interferiram constitui uma questão irresolúvel e por isso mesmo obsoleta. Há cada vez menor pertinência em encarar os produtos e processos estéticos contemporâneos como individualmente motivados, como manifestações de estilo de um gênio singular, do que como um trabalho de interação, socialmente motivado, em que o resultado não pode consistir em outra coisa que um jogo de tensões entre os mais variados agentes e fatores, uma economia simbólica de natureza dialógica. O artista talvez seja nesse processo uma força catalisadora, que faz as coisas acontecerem numa direção não-previsível (isto é, não-programada, livre de finalidades industriais) e sobretudo numa perspectiva de ampliação, de incremento da taxa de complexidade da cultura.




PROJETO VIRTUAL INTERATIVO WWW.M@RCOSUR

Gonzalo
Mezza

 

PROJETO VIRTUAL INTERATIVO WWW.M@RCOSUR

Minha obra no Cyberespaço, Espaço público e Museológico, desde 1970, representa a mutação e o trânsito que a humanidade está experimentando com a proximidade do novo milênio.

 

As artes visuais não estão alheias a esta passagem do material ao virtual. A nova ordem geopolítica e multicultural entre continentes afetados pela democratização dos gigantescos avanços dos novos meios de comunicação, cada vez mais inteligentes, altera a natureza do pensamento a percepção do tempo e espaço dos aparatos reprodutivos das clássicas belas artes. Como no renascimento, o artista recupera seu status de artesão in- telectual, científico e técnico.

Hoje, a vanguarda está em todas as partes, livre do poder hegemônico dos Estados. O cyberespaço é o marco de um novo suporte para a energia criadora do pensamento contemporâneo.

Com suas infinitas conexões em rede, a Internet potencializa novos vínculos coletivos, conectando cada ser humano com seus semelhantes, sem limites de fronteiras e centros de poder. Verdadeiros oceanos de neurônios digitais do conhecimento abertos ao desafio do novo século como metáfora de vida, solidariedade e relacionamento, sendo que dificilmente a humanidade sobreviveria sem ele ao novo milênio.

Desmascarando o ego das ideologias elitistas da estética ocidental, a arte não deve ser pensada em oposição à nova indústria cultural. A informática e a tecnologia são poderosos instrumentos criados pelo homem inteligente para desmistificar teorias supostamente universais do belo, mostrando que, na realidade, tais teorias não passam de visões de classe sobre códigos socialmente compartilhados de comunicação e de mercado.

O novo paradigma, a cybercultura de redes, é uma mutação antropológica nunca vista. Cada neurônio é um link para criar um mundo mais justo que navega entre as galá- xias infinitas desde o tempo do Bigbang.

Cada chips é um cheque ao sistema antropofágico das artes contemporâneas.

Gonzalo Mezza , Porto Alegre, MCMXCVIII S.XX

 

 

 

 


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